Há uma década, a trajetória da Cannabis Medicinal no Brasil tomou um rumo significativo, impactando diretamente a saúde de milhares de pacientes que agora contam com essa terapia como uma opção para tratar epilepsia, Alzheimer, Parkinson, autismo e outras doenças.
Atualmente, a regulamentação do uso e comercialização do canabidiol (CDB) ou do tetra-hidrocanabinol (THC) está sob competência exclusiva da ANVISA, que regula o registro de medicamentos e sua renovação, de acordo com a política nacional de medicamentos do Ministério da Saúde.
Na maioria das vezes, a prescrição médica para adquirir o medicamento à base de Cannabis ocorre quando o paciente já tem um diagnóstico estabelecido e está em tratamento com outros medicamentos. A compra do medicamento, atualmente, tem um custo muito elevado, e se torna inviável para grande parte da população.
Na comunidade médica, existem alguns defensores dos medicamentos à base de Canabidiol, que consideram que ele possui um grande potencial terapêutico. No entanto, ressaltam a necessidade de responsabilidade no seu uso e reconhecem que ainda falta realizar mais pesquisas e experimentos. O desenvolvimento dessas pesquisas abrange um processo burocrático em que todas as etapas devem ser respeitadas.
Buscando esclarecer as questões jurídicas, convidamos a Dra. Camila Schwab, advogada especializada em direito médico e associada ao escritório Almeida & São Paulo Advogados Associados, para explicar sobre as legislações e direitos para o uso da cannabis medicinal.
COMSAÚDE – Quais são as leis e regulamentações atuais relacionadas à cannabis medicinal no Brasil?
Camila Schwab – De forma geral, a Lei n.º 11.343/2006, disciplina que a União pode autorizar o plantio, a cultura e a colheita de plantas que sirvam de substrato para drogas, desde que exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização.
Atualmente a regulamentação do uso e comercialização do canabidiol (CDB) ou ainda do tetra-hidrocanabinol (THC) ocorre no âmbito exclusivo da ANVISA, que tem a competência para regulamentar o registro de medicamentos e sua renovação, isso de acordo com a política nacional de medicamentos do Ministério da Saúde.
A Anvisa, por meio da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) n.º 17/2015, fixou normas para importação de medicamentos à base de canabidiol em caráter excepcional. Em 2016, a Cannabis medicinal foi incluída na lista de plantas e substâncias de controle especial dada Portaria n.º 344/1998, do Ministério da Saúde, o que possibilitou o registro de medicamentos à base dos derivados da planta.
Assim, o Mevatyl®, primeiro medicamento à base de Cannabis medicinal, foi aprovado em 2017, para tratamento de esclerose múltipla.
Em 2019, a Diretoria Colegiada da ANVISA avançou consideravelmente na regulamentação da Cannabis medicinal, por meio da Resolução 327. Essa medida regulamentou o processo de concessão de Autorização Sanitária a empresas interessadas em fabricar e importar produtos derivados de Cannabis destinados ao uso medicinal humano. Foram aprovados 18 (dezoito) medicamentos para comercialização, sendo alguns derivados da planta Cannabis Sativa e outros do fitofármaco conhecido como Canabidiol, para tratamento de condições diversas, a exemplo da esclerose múltipla, epilepsia, Doença de Parkinson, transtornos de ansiedade, dentre outros.
Em março de 2022 foi editada a Resolução RDC n° 660/2022 também pela ANVISA que definiu critérios para importação de produtos derivados da cannabis por pessoa física, mediante prescrição de profissional médico. Este é o atual regulamento para a importação de produtos à base de cannabis por pessoas físicas, para tratamento de saúde prescrito por profissional legalmente habilitado.
A Nota Técnica n° 35/2023 da ANVISA, por sua vez, ressalta a impossibilidade de importação da cannabisin natura, bem como de flores e partes da planta, mesmo após o processo de estabilização e secagem, isso pelo risco de desvio para fins ilícitos e do que dispõe a convenção de Viena de 1971.
Atualmente, 25 (vinte e cinco) produtos derivados de Cannabis são aprovados pela Anvisa.
COMSAÚDE – Como anda a regulamentação em relação aos medicamentos serem disponíveis pelo SUS?
Camila Schwab – Não há lei ordinária que autorize ou defina critérios de fornecimento pela União, através do Sistema Único de Saúde, de produtos derivados da cannabis. Por enquanto, em âmbito federal o projeto mais recente e que se encontra pendente de apreciação pela Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) do Senado, é o PL n° 5511/2023 da senadora Mara Gabrilli (PSD-SP), que busca regulamentar o uso medicinal da cannabis no país. O texto estabelece, entre outros aspectos, normas para o cultivo e importação de cannabis e de produtos à base da planta para fins medicinais, de uso humano e veterinário.
Em alguns Estados, como o de São Paulo, por sua Lei n° 17.618/23 (regulamentada pelo Decreto n° 68.223 de 22/12/23) e Rio de Janeiro, pela Lei n° 10.201/23 (aprovada em 06/12/23), permite-se o fornecimento dos medicamentos com base no CDB e THC para pessoas que não tem condições financeiras em custear a sua importação e aquisição.
Em Salvador, também recentemente foi sancionada a Lei n° 9663/2023 que estabelece a Política Municipal de uso da cannabis para fins medicinais e distribuição gratuita de medicamentos prescritos à base da plantanas unidades de saúde pública municipal e privada, ou conveniada ao Sistema Único de Saúde – SUS.
De todo modo, é possível recorrer ao Poder Judiciário para obter a concessão de medicamentos derivados de Cannabis por intermédio do SUS, com base no Tema 102/STF, que estabelece requisitos para fornecimento de medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS.
COMSAÚDE – Quais são os requisitos para um paciente obter acesso à cannabis medicinal?
Camila Schwab – Conforme a legislação do Rio de Janeiro, para ter acesso aos medicamentos, o paciente deve seguir o procedimento padrão do SUS, utilizando a carteira nacional de saúde, e apresentar uma prescrição médica acompanhada de laudo. Nesse documento, deve ser explicitamente indicado o uso do medicamento como meio único viável para o tratamento, incluindo informações sobre métodos anteriores aplicados que não se mostraram viáveis ou eficazes.
Também é necessário comprovar que a parte não possui condições financeiras para importar o medicamento. Vale ressaltar que a avaliação dessa condição será revisada a cada seis meses.
Nos Estados que não possuem regulamentação e em casos de negação de fornecimento pelo SUS, é possível propor uma ação judicial nesse sentido. Nesse caso, o paciente deve comprovar: – que o medicamento possui registro sanitário na ANVISA; – que não há outro medicamento mais relevante ou aplicável ao seu caso clínico; – que não possui recursos financeiros suficientes para cobrir o procedimento
Nos casos das doenças raras e ultrarraras, como a esclerose lateral amiotrófica (ELA), o Poder Judiciário tem flexibilizado a exigência de registro na ANVISA, desde que o medicamento possua o referendo de agências internacionais congêneres.
COMSAÚDE – Como funciona o processo de obtenção de uma licença para cultivar, produzir ou vender cannabis medicinal?
Camila Schwab – Atualmente não há regulamentação para o cultivo e produção de Cannabis medicinal. A venda e o uso recreativo ou religioso da planta são considerados crimes no país. Contudo, quando se trata de uso terapêutico, a via judicial tem surgido como meio para permitir o cultivo, mediante comprovação de que este é o único meio financeiramente viável para obtenção da substância. Ou seja, se o cultivo não for permitido, o tratamento do paciente será inviabilizado.
É possível obter habeas corpus para o cultivo da Cannabis medicinal, sendo importante comprovar prescrição de um profissional da saúde, laudo médico evolutivo, orçamento que demonstre a impossibilidade de custear o medicamento, autorização para importação de produtos à base de cannabis da ANVISA, plano de cultivo elaborado por um engenheiro agrônomo e comprovação de cursos de cultivo e extração da planta.
O que tem sido lentamente observado no país são associações que têm obtido, por meio judicial, autorização para o cultivo da planta, como é o caso da Associação Brasileira Cannabis Esperança (Abrace) na Paraíba, a Associação de Apoio à Pesquisa e aos Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi) no Rio de Janeiro, e a Cultive (Associação de Cannabis e Saúde) e a Flor da Vida, ambas em São Paulo.
COMSAÚDE – Quais são as responsabilidades legais de um médico ao recomendar cannabis medicinal a um paciente? Qualquer médico pode receitar?
Camila Schwab – Qualquer médico devidamente registrado e com CRM ativo, de qualquer especialidade – ou sem especialidade alguma –, pode receitar Cannabis medicinal aos seus pacientes. Além disso, outros profissionais da saúde, como dentistas, fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais também podem prescrever cannabis medicinal.
A responsabilidade do médico se baseia na deontologia médica e nos pressupostos da responsabilidade civil e criminal, seguindo as mesmas regras aplicáveis a todo e qualquer ato médico. O mesmo vale para os demais profissionais da saúde, que se submetem às regras dos seus respectivos conselhos profissionais e à legislação vigente.
COMSAÚDE – Quais são as implicações legais de pacientes que viajam com cannabis medicinal para estados ou países onde não é legal?
Camila Schwab – Os viajantes que fazem uso de cannabis medicinal podem portar a quantidade adequada para a duração da viagem, desde que sigam as normas estabelecidas pela ANVISA.
É recomendado também que se tenha em posse o laudo ou relatório médico, a prescrição e a autorização de uso e importação de cannabis medicinal. Para viagens internacionais, é aconselhável consultar a legislação de cada país, considerando a grande variação entre elas; alguns adotam posturas mais progressistas, enquanto outros mantêm restrições mais severas
COMSAÚDE – Como a legislação aborda a qualidade e a segurança dos produtos de cannabis medicinal disponíveis no mercado?
Camila Schwab – Os medicamentos derivados de cannabis são fiscalizados pela ANVISA, conforme o disposto nas normas para medicamentos Fitoterápicos, devendo seguir os regramentos da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 327 de 2019 e demais atos normativos pertinentes.
COMSAÚDE – Há alguma lei específica na Bahia sobre o uso e distribuição de medicamentos a base de Cannabis?
Camila Schwab – Até o momento, não. Em março de 2023, foi proposto o Projeto de Lei pelo Deputado Euclides Cunha (PT), que propõe uma política estadual de fornecimento gratuito de medicamentos à base de Cannabis. Há outro projeto de lei, de autoria do Deputado Osni Cardoso, com objetivo semelhante.
COMSAÚDE – Em Salvador, qual a situação da lei sobre o fornecimento de medicamentos pelo SUS?
Camila Schwab – Em Salvador, a Lei 9663/2023 foi sancionada em 06 de março de 2023, garantindo, em seu art. 1º, o direito ao fornecimento de medicamentos nacionais ou importados à base de Cannabis através do Sistema Único de Saúde Municipal. Para isso, é necessário apenas a prescrição médica, seguindo as diretrizes mínimas descritas na lei.
Essa lei assegura a distribuição gratuita de medicamentos à base de Cannabis em unidades de saúde pública municipais e nas instituições privadas conveniadas ao Sistema Único de Saúde. No entanto, é necessário que a Secretaria Municipal da Saúde institua uma comissão de trabalho para estabelecer estratégias e programas específicos para inclusão dos pacientes
Entretanto, apesar de não regulamentada, essa Lei se encontra em plena vigência. O paciente pode, então, postular à municipalidade o fornecimento do medicamento ou mesmo recorrer ao Poder Judiciário.
Advogada associada ao escritório Almeida & São Paulo Advogados Associados. Graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), pós-graduanda em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e pós-graduanda em Direito Médico pelo Complexo de Ensino Renato Saraiva (CERS). Possui experiência nas áreas cível e consumerista, com ênfase em saúde suplementar e direito médico.