A formação médica no Brasil enfrenta desafios significativos devido à proliferação de faculdades de medicina que muitas vezes carecem da estrutura e dos recursos necessários para oferecer uma educação de qualidade aos futuros profissionais de saúde. Nos últimos anos, observou-se um aumento considerável no número de instituições de ensino médico, resultando em um aumento significativo na quantidade de médicos formados anualmente.
A falta de preparo adequado nas faculdades de medicina pode ter consequências sérias, não apenas para os alunos, mas também para a saúde pública em geral. A formação médica deficiente pode levar a uma prestação de cuidados de saúde inadequada, diagnósticos errôneos e tratamentos ineficazes, comprometendo a segurança e o bem-estar dos pacientes.
E foi pensando em tudo isso que optamos por abordar essa questão no Dia do Médico, uma vez que essa preocupação também é compartilhada por eles, considerando que o objetivo primordial da profissão é salvar vidas e cuidar das pessoas. Muitos reconhecem que a formação médica é uma área crucial que demanda atenção e investimento, garantindo a preparação adequada dos profissionais e, consequentemente, a promoção da saúde e do bem-estar da população.
Confira a entrevista com o Dr. Raymundo Paraná, professor e doutor, que detalha de forma abrangente a situação atual, compartilhando sua preocupação sobre o assunto com uma perspectiva tanto na área de assistência médica quanto no âmbito acadêmico.
COMSAÚDE – Como você avalia a qualidade da formação médica oferecida no país atualmente?
Raymundo Paraná – O Brasil passou por um crescimento desenfreado de escolas médicas jamais vistas no mundo hoje. O país tem mais escolas médicas do que a China e os Estados Unidos, apesar de possuir um PIB muito menor e uma população também menor em comparação a esses países. A ideia de que a formação volumosa de médicos resolveria os problemas de acesso à saúde no Brasil é absolutamente equivocada. Na realidade, não só não resolve, como complica ainda mais a situação.
Não possuímos uma estrutura de avaliação adequada para os egressos no Brasil. Não realizamos a prova do médico como em outros países, o que nos impede de ter uma avaliação da suficiência técnica dos médicos formados. Deveríamos ter um sistema estruturado para avaliar efetivamente o desempenho dos graduados das faculdades de medicina. No entanto, atualmente, não dispomos de tal estrutura no país. Ao contrário, concedemos diplomas aos graduados, permitindo que esses indivíduos atuem e cuidem de vidas humanas.
Conheço somente dois projetos no Brasil de avaliação, um foi realizado em São Paulo nos quais se aplicou um teste semelhante ao Revalida, utilizado para avaliar estrangeiros. Este teste resultou em taxas de reprovação de cerca de 40% nas escolas públicas e aproximadamente 70% nas faculdades privadas. Nossa percepção individual como professores é que a situação é ainda mais grave. Já testemunhamos pessoas com diplomas de medicina que não possuíam conhecimentos mínimos de raciocínio clínico, como também não tinham conhecimento sobre assuntos tão básicos como verminoses. A ausência de uma estrutura adequada no país para avaliar os graduados das faculdades de medicina é uma das maiores temeridades.
COMSAÚDE – Quais são os principais desafios que os estudantes de medicina enfrentam durante sua formação?
Raymundo Paraná – Inicialmente, é bom chamar a atenção que um curso de medicina, por mais que ele tenha projetos pedagógicos diferentes, ele é sempre um curso tutorial. Alguém precisa pegar na mão do estudante, alguém precisa ordenar o raciocínio do estudante, ensiná-lo a contextualizar os exames de imagem, exames laboratoriais. Não é uma tarefa fácil. Para isso, você precisa ter bons professores.
Na medicina, é necessário escalonar o aprendizado focando na saúde pública e nas unidades básicas de saúde, que enfrentam 70% dos principais problemas de saúde que podem ser resolvidos. Isso se deve ao fato de que esses problemas, embora sejam de grande impacto do ponto de vista da saúde coletiva, podem ser gerenciados em unidades básicas de saúde em termos de saúde individual. Para atingir esse objetivo, é essencial que os profissionais sejam bem formados e tenham recebido treinamento adequado nessas unidades básicas de saúde, com o apoio de bons professores.
COMSAÚDE – Qual a sua avaliação sobre a formação dos professores de medicina?
Raymundo Paraná – O professor precisa ter mestrado, mas nem sempre é necessário possuir doutorado. É importante considerar qual formação esses professores receberam e que habilidades específicas adquiriram para desempenhar seu papel de educadores. Em uma realidade como a do Brasil, onde o crescimento das escolas foi exponencial, certamente não houve tempo suficiente para formar professores em consonância com a demanda crescente. Isso com certeza não.
COMSAÚDE – E em relação aos campos de práticas nas escolas de saúde ?
Raymundo Paraná – Há uma infinidade de cursos e, no entanto, eles não possuem esses campos de prática disponíveis. Eles dependem dos campos de prática do Sistema Único de Saúde (SUS), porém, não temos informações claras sobre os professores envolvidos e a forma como esses campos de prática são utilizados na atenção básica. Em seguida, temos os cuidados de média complexidade em hospitais, onde ocorrem internações de pacientes com enfermidades não tão graves, como apendicite, colecistite, hepatite, entre outras. Por fim, temos a alta complexidade, representada por hospitais com equipes altamente especializadas e grupos multidisciplinares que lidam com doenças extremamente complexas.
No Brasil, pouquíssimas escolas, com exceção das Federais, oferecem campos de prática adequados e especificamente projetados para esse fim. Hospitais-escola são raros, o que se configura como uma deficiência significativa no ensino médico.
COMSAÚDE – Quais aspectos são essenciais para garantir uma formação médica de qualidade?
Raymundo Paraná – Bons professores, bons campos de prática e um projeto pedagógico que utilize bem os seus professores e os seus campos de prática. Volto a dizer que eu temo que nós não tenhamos essa oportunidade na imensa maioria das escolas médicas do Brasil.
COMSAÚDE – Você acredita que o aumento de faculdades de medicina afetou de alguma forma a qualidade do ensino médico no Brasil?
Raymundo Paraná – Acredito que sim. Além disso, houve alguns problemas nas Universidades Federais. Houve um aumento significativo no número de vagas e uma falta de atenção ao curso básico, o que é extremamente preocupante. Podemos sentir essa dificuldade nos alunos que chegam ao quarto, quinto ou sexto ano, pois eles não adquiriram os conhecimentos fundamentais em áreas como parasitologia e microbiologia. Isso foi resultado de certos modelos pedagógicos que adotamos, mas também foi influenciado pelo aumento excessivo de vagas nas Universidades Federais.
Olha, durante o meu curso de medicina éramos 90 alunos e tínhamos um número maior de professores. Atualmente, acredito que os alunos chegam a ser em torno de 160 e, no entanto, contamos com menos professores para o mesmo campo de prática. Essa situação configura-se como uma equação desequilibrada. Esse problema não se restringe apenas às universidades federais; nas instituições privadas a escassez é ainda mais acentuada. É absurdo o acúmulo de deficiências que se observa.
Quando avaliamos os alunos, percebemos que a expectativa deles é passar em uma residência médica, pois vêem nisso a oportunidade de preencher lacunas em seu conhecimento. No entanto, isso é uma tarefa difícil, pois as residências médicas variam muito em qualidade. Algumas são capazes de preencher essas lacunas, enquanto outras podem até agravá-las. Além disso, não há vagas em residências para todos os interessados. Uma vez que o indivíduo obtém o diploma, já pode atuar clinicamente, o que é problemático e contribui para as dificuldades em garantir um acesso à saúde de qualidade.
COMSAÚDE – Como a falta de preparo adequado durante a formação pode impactar a prática médica?
Raymundo Paraná – De diversas maneiras. Em primeiro lugar, a qualidade essencial está diretamente relacionada à vida de um ser humano. Do ponto de vista coletivo, isso impõe um problema imenso ao Estado e coloca em risco a própria viabilidade do Sistema Único de Saúde (SUS). Um médico deve possuir um raciocínio clínico bem desenvolvido e utilizar exames como complemento. Não se deve solicitar indiscriminadamente uma grande quantidade de exames, algo que muitos pacientes desejam, mas que sabemos não ser benéfico nem para o paciente, nem para a entidade que custeia, seja o SUS ou um plano de saúde. Um médico que solicita muitos exames muitas vezes tem uma formação clínica deficiente. Ele tenta compensar sua falta de habilidade técnica buscando diagnósticos por meio de exames. Os exames são amostras biológicas que apresentam variações, e o fato de estarem um pouco acima ou abaixo da normalidade pode não indicar nada relevante, a menos que seja contextualizado por um raciocínio clínico.
Se um profissional não é capaz de realizar um raciocínio clínico apropriado, ele tenderá a solicitar uma grande quantidade de exames, o que sobrecarrega consideravelmente o sistema de saúde, tornando-o financeiramente insustentável. Isso leva à sua eventual falência e não resolve o problema que leva o paciente a buscar vários médicos sem solucionar sua condição.
COMSAÚDE: Existem diferenças entre escolas públicas e privadas?
Raymundo Paraná – Na minha opinião, sim, existem diferenças. Embora haja exceções, de maneira geral, as Instituições Federais possuem vantagens distintas. Elas contam com hospitais-escola e professores concursados, que passaram por um processo de preparação adequado, possuindo mestrado, doutorado e uma formação contínua. Além disso, as escolas federais demonstram uma preocupação pedagógica que muitas vezes falta em instituições privadas.
É comum observarmos em escolas privadas a contratação de professores sem uma estrutura de avaliação ou concurso adequado para garantir se o indivíduo possui ou não a aptidão necessária. Imagino também que algumas cidades do interior não possuam a capacidade de suprir todas as demandas por professores e preceptores em uma escola médica de grande porte. Portanto, acredito que ainda exista uma discrepância, mas reitero que, sem uma estruturação adequada para avaliar os médicos formados, torna-se muito difícil responder a essa questão de forma definitiva.
COMSAÚDE – Quais mudanças ou medidas você acha que poderiam ser implementadas para melhorar a qualidade da formação médica no país?
Raymundo Paraná – Primeiro a gente precisa estruturar um sistema de avaliação das escolas, se realmente estão fazendo o que disseram que iriam fazer quando tiveram os seus cursos aprovados, se realmente tem professores que estão sendo avaliados quanto a sua capacitação e habilidade para ensinar medicina, se realmente tem campos de práticas adequados ou se estão dividindo o campo de práticas com outras tantas escolas onde os alunos ficam simplesmente perdidos sem uma orientação ideal no acompanhamento de pacientes. E depois implementar uma avaliação para o egresso.
É importante a gente avaliar o egresso, a qualidade do indivíduo que está saindo dessas escolas e se ele realmente está habilitado para lidar com as questões mais básicas da saúde humana. Isso é extremamente importante, mas não seria uma avaliação de um especialista, mas de um médico generalista que deveria ter ferramentas e conteúdo para lidar com as doenças mais básicas que atingem o ser humano, as infecções, a infecção urinária, as verminoses, a infecção respiratória, a asma e tantas outras que na maioria das vezes podem ser manejadas por um bom médico clínico em unidades básicas de saúde que sequer mereceria ou necessitaria verticalizar para média e alta complexidade.
COMSAÚDE – Você acredita que a discussão sobre a qualidade da formação médica no Brasil é um tema abordado o suficiente dentro da comunidade médica e pelas autoridades competentes?
Raymundo Paraná – Não é. Atualmente, estamos lidando com uma situação bastante peculiar. Ainda existem algumas manifestações isoladas, mas elas são pontuais e não representam um movimento articulado que possa expressar as preocupações da nossa classe e aproximar os médicos da sociedade para mostrar o porquê de nossa preocupação.
Essa situação decorre em parte do grande número de médicos formados e também devido a influências políticas que invadiram nossas entidades de classe, resultando em uma desorganização que nos privou da capacidade de reações que tínhamos anteriormente. Devido a essa desorganização, injustamente, muitos de nós, médicos, acabamos sendo desqualificados e acusados de defender a reserva de mercado. Na realidade, ninguém está preocupado com reserva de mercado. Nossa principal preocupação é com a saúde da população e com a viabilidade do Sistema Único de Saúde (SUS). No entanto, infelizmente, estamos enfrentando dificuldades para transmitir efetivamente essa mensagem para a população em geral. Portanto, minha resposta é que temos muito a melhorar.
COMSAÚDE – Qual o impacto de uma má formação médica na sociedade?
Raymundo Paraná – A situação é preocupante em vários aspectos. Os impactos dos insucessos e as possibilidades de resultados negativos para os pacientes, aliados à falta de resolutividade e ao aumento dos custos do sistema, estão inviabilizando o funcionamento do SUS e, aos poucos, começam a afetar também a saúde privada. Isso porque as operadoras de saúde, ao se tornarem vítimas desses excessos, precisam repassar os custos para os usuários. Com uma visão predominantemente empresarial, as operadoras enfrentam o desafio de equilibrar custos e qualidade.
Como resultado, muitos usuários não serão capazes de arcar com esses custos crescentes. Consequentemente, as operadoras podem reduzir a qualidade dos serviços oferecidos, diminuir a cobertura dos planos iniciais e, em última instância, forçar alguns usuários a recorrer ao Sistema Único de Saúde, que já está sobrecarregado e subfinanciado. Esse influxo adicional de 40 a 45 milhões de pessoas provenientes do setor de saúde privada no Brasil, somado aos 145 a 150 milhões de pacientes já atendidos pelo SUS, gera impactos negativos significativos.
Em outras palavras, o sistema como um todo está se desorganizando. O custo dos serviços de saúde já está aumentando devido à incorporação de tecnologias avançadas, mas não pode aumentar ainda mais devido à má qualidade da formação profissional. Esse problema não afeta apenas os médicos, mas também os enfermeiros, nutricionistas e outras áreas de saúde. Esse fenômeno observado nas escolas médicas também se reflete na fisioterapia, enfermagem e em todas as áreas de saúde, tornando o sistema menos eficaz e mais dispendioso.
COMSAÚDE: Em relação aos cursos e programas de pós-graduação disponíveis na Internet?
Raymundo Paraná – As pessoas confundem cursos online com programas de pós-graduação, o que não deveria ser o caso, pois a pós-graduação médica é regulada por instâncias competentes, como o MEC e a CAPES. Não é qualquer curso online que confere a um indivíduo o título de pós-graduado.
COMSAÚDE: O que você pode dizer sobre a abertura de novos cursos de medicina?
Raymundo Paraná – A moratória de abertura de cursos de medicina não pode ser a solução. Uma sociedade moderna não pode deixar de aceitar bons projetos devido à existência de projetos deficientes em funcionamento. Isso é inaceitável. Se alguém apresentar uma proposta para uma boa escola médica com todas as condições adequadas, essa proposta não pode ser impedida por uma moratória, que é imposta devido à presença de outras escolas inadequadas. Isso é resultado da ausência de um sistema regulatório e de fiscalização eficaz, o que permite o funcionamento precário dessas instituições. Essa é uma questão que o Brasil precisa resolver urgentemente. Além disso, a imposição de uma moratória pode levar à judicialização, o que, por sua vez, agrava ainda mais o problema, como recentemente foi observado no país.
COMSAÚDE: Qual a situação atual do uso das redes sociais pelos médicos?
Raymundo Paraná – Os profissionais médicos estão se tornando fluentes na linguagem das redes sociais, o que, aliado à falta de discernimento do público em relação à qualidade da fonte de informações, tem levado a uma enxurrada de práticas duvidosas.
Existe uma questão complexa do surgimento de indivíduos com baixa qualidade técnica que se envolvem nessas práticas, não baseadas em evidências científicas. Eles promovem tratamentos questionáveis, incluindo fórmulas fitoterápicas, shots, hormônios e soros, representando uma deturpação da medicina. Essas práticas podem prejudicar a saúde dos pacientes a longo prazo, mas, infelizmente, estão se tornando cada vez mais comuns nas redes sociais devido à falta de regulamentação e controle.
No entanto, essa linguagem enganosa é usada para atrair pacientes para consultórios particulares, onde são oferecidos tratamentos questionáveis. Isso resulta em um desperdício de recursos significativo e potencial risco à saúde dos pacientes no longo prazo. Todos esses problemas estão intrinsecamente relacionados ao contexto da formação médica no Brasil.
Possui graduação em Medicina pela UFBA, residência médica em Gastroenterologia HC-USP, fellow em Hepatologia INSERM/Hopital Hotel Deu Université Claude Bernard, Lyon-Franca. É mestre em Medicina e Saúde pela UFBA, doutor em Medicina e Saúde pela UFBA programa Capes / Cofecub Lyon-França e livre-docente em Hepatologia Clinica pela UFBA. Atualmente é professor titular da Faculdade de Medicina/UFBA, médico assessor da câmara técnica de Hepatites Virais na Secretaria de Saúde do Estado da Bahia, líder do grupo de pesquisa em Hepatites Virais e Hepatotoxicidade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).